Nos últimos três anos, o prefeito do município de Anamã (a 209 quilômetros de Manaus), Chico do Belo (PSC), contratou mais de R$ 3,7 milhões da empresa “faz-tudo” J M DA S PINHEIRO, da família da servidora municipal Zelilde Pinheiro, eleita vereadora do município pelo Republicanos nas eleições de 2020. Todos os contratos afrontam a Lei de Licitações (Lei 8.666/93) e estão na mira do Tribunal de Contas do Estado (TCE-AM).
A própria Prefeitura de Anamã informa que Zelilde da Silva Pinheiro é servidora do município desde outubro de 1997, lotada na Secretaria Municipal de Administração e Planejamento. O nome dela aparece nas folhas de pagamento publicadas no Portal da Transparência dos Municípios.
No último dia 22 de fevereiro, o prefeito Chico do Belo assinou e publicou no Diário dos Municípios o Decreto n° 580/20 que concedeu, a pedido dela, o afastamento da função de Assistente Administrativo II para exercer o mandato de vereadora até dezembro de 2024.
A relação da empresa da família da servidora Zelilde Pinheiro com a prefeitura de Chico do Belo começa em 2018 com um contrato modesto de pouco mais de R$ 108 mil (Termo de Contrato n° 100/18) para “fornecimento de material de consumo do tipo gêneros alimentícios para a merenda escolar”.
“Há flagrante ilegalidade nesse contexto. A Lei de Licitações (8.666/93) impede servidores públicos e seus parentes até terceiro grau de contratar e vender serviços ao município onde é lotado, é taxativo”, disse o auditor e conselheiro substituto do TCE-AM, Alípio Reis Firmo Filho.
De acordo com informações da Receita Federal, a empresa J M DA S PINHEIRO possui nada menos que 34 atividades, cada uma mais diversa que a outra, se encaixando no conceito de empresa faz-tudo que dominam as licitações no interior do Amazonas.
Entre as atividades comerciais da empresa da família da vereadora Zelilde Pinheiro estão desde o comércio de produtos alimentícios, carnes, armarinho, cama, mesa e banho; passando por obras de urbanização de ruas e praças, perfuração de poços artesianos; instalações hidráulicas, de gás e elétricas; transporte escolar e até transporte hidroviário de passageiros.
Contrato milionário
Com o teste bem-sucedido de passar pelos órgãos de controle em 2018 na licitação de R$ 108 mil, a empresa J M DA S PINHEIRO fechou 2019 com mais de R$ 3,7 milhões contratados com a prefeitura de Chico do Belo.
Entre o início de 2019 e o final do ano houve mudança na titularidade gerencial da empresa, Jordan Matheus da Silva Pinheir assumiu o empreendimento que saiu das mãos da servidora Zelilde Pinheiro.
Um dos contratos assinados pela servidora Zelilde Pinheiro e a Prefeitura de Anamã foi o Termo de Contrato n° 11/2019 no valor de R$ 735,4 mil para fornecer “licenças de uso de software e aplicativos (cessão de uso mensal) com serviços de conversão de base de dados, instalação, configuração e treinamento, incluindo suporte técnico”. O curioso nesse contrato é que nenhuma das 34 atividades comerciais registradas pela J M DA S PINHEIRO na Receita Federal tem essa finalidade.
“Está claramente configurada a ‘gerência’ da servidora e do filho como representantes da empresa nesses contratos. É claro que isso é irregular. Um servidor público pode participar de empresas, desde que ele não seja sócio-gerente e, mesmo assim, ainda estará impedido de contratar com a administração pública de sua oriegem”, comenta conselheiro do TCE-AM que pediu sigilo para não ficar impedido caso tenha que ser relator das contas do prefeito Chico do Belo.
A partir do segundo semestre de 2019 passa a assinar os contratos com a Prefeitura de Anamã o filho da vereadora, Jordan Matheus da Silva Pinheiro.
É de Jordam Matheus o nome que aparece na Ata do Pregão Presencial n° 47/2019 de R$ 1,3 milhão como representante da empresa J M DA S PINHEIRO junto à Comissão de Licitação de Anamã para fornecer “gêneros alimentícios para atender as secretarias municipais”.
Em seguida, ele assina outro contrato de R$ 997,4 mil referente ao Registro de Preço n° 16/2019 e mais outro de R$ 662,4 mil, referente ao Termo de Contrato n° 55/2019 para “gêneros alimentícios”.
Análise jurídica
Mesmo com essa manobra na titularidade da empresa J M DA S PINHEIRO, as contratações continuam irregulares, conforme explica a advogada e professora doutora de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Glaucia Ribeiro, porque ferem o artigo 9° da Lei nº 8.666/1993 (Lei de Licitações), que afirma não poderem participar “direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários: servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação”.
Segundo Glaucia Ribeiro, há farto entendimento junto aos superiores tribunais que veda a relação de empresas de servidores públicos de contratar com o município ou órgão público que possui relação jurídica.
“O ordenamento jurídico brasileiro veda infringência ao princípio da moralidade. A Lei licitatória estendeu a vedação aos parentes (nepotismo). Não pode participar de procedimento licitatório a empresa que possuir, em seu quadro de pessoal, servidor ou dirigente do órgão ou entidade contratante ou responsável”, reforça Glaucia Ribeiro.
A professora afirma que mesmo que não haja no Estatuto do Servidor Estadual ou municipal vedação frontal à contratação de empresa de servidor pelo poder público, a vedação, por similaridade, deve ser retirada do Estatuto do Servidor Federal.
“A regra disposta no estatuto do Servidor Público Federal vale para todo e qualquer servidor público. Basta que tenha relação jurídica com o poder público para configurar conduta irregular”, diz Glaucia Maria.
No caso de constatada a ilegalidade e houver denúncia do Ministério Público do Estado (MPE-AM) contra os servidores públicos envolvidos nas contratações irregulares, “as repercussões legais punitivas são duras”, avalia a professora.
“No âmbito administrativo pode ensejar um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) com pena até demissão. Na esfera cível, pode ocasionar processo de improbidade administrativa contra os agentes públicos. Já na seara penal incide crimes previstos no código penal como também os crimes previstos na Lei 8.666/93. Tudo obedecendo ao devido processo legal e de ampla defesa”, explica Glaucia Ribeiro.
‘De tudo, um pouco’
Provocado sobre a existência de empresas do tipo ‘faz-tudo’ dominando as licitações no interior do Amazonas, o presidente do TCE-AM, conselheiro Mario de Mello, afirmou que o tribunal de forma preventiva “orienta os gestores pela correta aplicação dos recursos”, mas que não atua como fiscal “de tais empresas por conta desses múltiplos registros”.
“Nesse contexto, atuamos preventivamente emitindo notas técnicas e orientando os gestores para correta aplicação dos recursos. Especificamente sobre empresas ‘faz-tudo’, a Lei Geral de Licitações não prevê limitações à participação dessas empresas nos certames. Tanto é que nem a Receita Federal nem a Junta Comercial impedem o registro de múltiplas atividades econômicas nos cadastros das empresas. Nossa atuação não se pauta em fiscalizar tais empresas por conta desses múltiplos registros, mas apurar se essas empresas, quando declaradas vencedoras e eventualmente contratadas pela administração, cumprem com os requisitos editalícios e possuem capacidade de execução dos contratos”, afirmou o presidente do TCE-AM, conselheiro Mario de Mello.
Outro lado
Procurado por e-mail, telefone e mensagem de WhatsApp, o prefeito Chico do Belo e a Prefeitura de Anamã não responderam aos questionamentos da reportagem.